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Emocional x Profissional


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FOTOPOESIA (pág. 48)
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Edição 72 - Julho/Agosto/Setembro de 2015

SINTONIA (págs. 34 a 37)

Emocional x Profissional

Ensinar empatia é possível?


 

Projeto da Unicamp, que ensina alunos de Medicina a lidar de forma positiva com suas emoções ao atender pacientes, mostra que sim

Marco Antonio de Carvalho Filho*
 

Eram duas horas da manhã e eu lutava contra o ranger do beliche. A porta abriu e alguém gritou: “parada na UTI”. Meus companheiros se levantaram automaticamente, seus olhos não tinham tempo para distrações. Eu os acompanhei ainda sem saber se estava dormindo ou acordado. Os procedimentos de reanimação cardiopulmonar começaram como uma orquestra, todos sabiam milimetricamente o que fazer, menos eu. Todas as tentativas de ajudar atrapalhavam. Constrangido, me retirei para um canto escuro, quando ouvi o convite: “quer massagear?” Iniciei as compressões torácicas. Mas não conseguia desviar os meus olhos dos olhos daquele senhor deitado à minha frente. Sua esclera foi progressivamente perdendo o brilho e, finalmente, entendi o que estava acontecendo. O paciente morreu. Silêncio. Ninguém falou nada. Saímos do quarto e voltei para minha luta contra o beliche. Com 18 anos, foi a primeira vez que vi alguém morrer. O que mais me incomoda é que, até hoje, não sei o nome da pessoa que dividiu comigo seus últimos momentos.

Durante a graduação e a residência médica entramos em contato com situações terríveis: desigualdade social, injustiça, dor, sofrimento, perda, luto, morte. Contudo, infelizmente, não temos espaço no currículo médico para refletir sobre as emoções que essas experiências despertam. Esses sentimentos acabam sendo reprimidos, muitas vezes considerados tabus e, eventualmente, um sinal de fraqueza. Um sinal de que ainda não estamos realmente preparados para sermos médicos. Muitas vezes, esbarramos em uma tradição, nem sempre verbalizada, de que “médicos que sentem” podem ter sua capacidade técnica e seu raciocínio clínico prejudicados.

 


"Percebemos que os alunos não se sentiam à vontade durante
uma consulta médica"


Não aprendemos a lidar com as emoções e, em geral, não gostamos de problemas que não sabemos resolver. Essa repressão de sentimentos pode levar a um distanciamento em relação ao paciente, como forma de proteção, o que, muitas vezes, culmina em certo cinismo, trazendo prejuízos para a relação médico-paciente. Porém, esse não é o único efeito danoso. O distanciamento emocional também atrapalha nossa realização profissional. Ter a oportunidade de ajudar alguém é uma fonte de grande alegria e de potência, que só é vivida em plenitude se estivermos realmente conectados com a pessoa ajudada. Talvez esse seja o grande segredo daqueles médicos que estão sempre sorrindo no final do expediente, seja do ambulatório ou do centro cirúrgico. Aquele gostinho doce do dever cumprido, da vida vivida com sentido e significado. Por isso, pergunto: por que não ensinamos isso aos nossos alunos?

Para responder a esta pergunta devemos primeiro conhecer nossos estudantes. Em muitas universidades, nossos calouros entram no curso por volta dos 18 anos. São filhos de pais gradua­dos e, portanto, de nível socioeconômico alto. Suas famílias têm, em geral, por volta de quatro indivíduos. A maioria deles é solteira e nunca trabalhou. São alunos de alto desempenho, pouco habituados às frustrações, com um histórico acadêmico imaculado. Nos anos que antecedem ao vestibular, esses estudantes passam por um processo de massificação e condicionamento de preparação para os testes. Condicionamento que, muitas vezes, privilegia menos a reflexão e mais a acumulação de conhecimentos, nem sempre contextualizados.

Durante o curso médico, as cadeiras técnicas são privilegiadas com maior carga horária. Parece que acreditamos que os alunos vão acabar aprendendo “a outra parte” da profissão, naturalmente. No passado, talvez isso de fato acontecesse. O tempo de exposição dos alunos a determinados professores-modelo era, realmente, grande. Todas as escolas tinham seus modelos consagrados na Clínica, na Pediatria, na Obstetrícia, na Cirurgia. Professores que ensinavam o que era ser médico e qual o significado social da Medicina. Excelentes técnicos, mas também generosos, gentis com seus pacientes, amorosos, cultos e eruditos. Especialistas na espécie humana como um todo e não somente na sua dimensão fisiopatológica.



Marco Antonio de Carvalho Filho (foto acima):
"alunos e professores aprendem com seus erros e acertos
para estar mais preparados para atender o próximo paciente,
de uma consulta real"


Hoje, com a fragmentação do conhecimento e do currículo, esses exemplos, quando existem, não têm muito tempo de contato com os jovens médicos, que precisam estagiar em um “sem número” de especialidades. De 15 em 15 dias apresentamos um fragmento da Medicina aos nossos alunos, com a esperança de que, sozinhos, eles consigam ligar os pontos.

Em nossa universidade, despertamos para essa realidade quando, ao receber os alunos do último ano no estágio de Emergências, percebemos que eles não se sentiam à vontade durante uma consulta médica, seu principal ambiente de trabalho. Percebemos ainda que esse desconforto não era por não conhecer as doenças, os diagnósticos e os tratamentos, mas por desconhecer seus doentes. Por não conseguir se comunicar com eles e não saber lidar com as emoções presentes numa consulta, do paciente e do próprio médico.
 

Como funciona a atividade

Demo-nos conta de que precisávamos abordar a questão. Desenvolvemos, então, uma atividade de simulação de consultas com uma companhia de atores especializados em educação. Nossos pacientes simulados têm patologias pouco desafiadoras do ponto de vista técnico, mas todos têm uma dimensão afetiva a ser abordada. Sentimentos como medo, tristeza, culpa, desamparo, solidão, impotência e frustração permeiam hipertensão arterial, câncer, diabetes, insuficiência cardíaca, dentre outras doenças. Todos os estudantes têm a oportunidade de atender a um desses pacientes simulados, enquanto são assistidos por seus colegas em um circuito fechado de TV.

As atividades acontecem em grupos de oito alunos, durante um mês, semanalmente, e são muito intensas. Cada encontro começa com a separação de dois alunos do grupo, que realizarão as consultas, individualmente, do mesmo paciente simulado. Após as consultas, realizamos o debriefing, uma técnica de feedback em que o professor é um facilitador do debate e o aprendizado é baseado no reforço positivo. Desenvolvemos uma técnica de debriefing estendido, voltado para a abordagem das emoções e o ensino de empatia. Conversamos abertamente sobre as emoções dos pacientes em relação à doença e em relação ao médico, e também sobre as emoções do médico em relação ao paciente. Para esse momento, criamos um ambiente protegido, no qual professor e aluno estão no mesmo nível, aprendendo juntos.

As consultas são um pretexto para a verdadeira discussão, que gira em torno do tema: que tipo de médico queremos ser e que tipo de Medicina queremos praticar. Os casos simulados acabam trazendo à tona experiências reais do internato que ainda não tinham sido completamente elaboradas. As experiências negativas são revividas e modelos, também negativos, de prática são identificados. Os professores também têm a oportunidade de reviver experiências semelhantes do passado e do presente. Juntos, alunos e professores aprendem com seus erros e acertos para estar mais preparados para atender o próximo paciente, de uma consulta real. As emoções aparecem e são sentidas e compartilhadas de forma natural. Cada sessão dura por volta de quatro a cinco horas. A sensação dominante é de resgate, tanto para alunos, quanto para professores. Eis uma frase de um dos alunos que exemplifica isso: “O contato mais humano e a atenção especial a cada paciente fazem você reafirmar a paixão pela Medicina e se lembrar da visão meio utópica do primeiro ano, que por muitas vezes se perde pelos anos e pelas enfermarias”.

Exploramos, também, as semelhanças entre o papel de aluno e de paciente, e o de médico e professor. O curso tem 98% de aprovação máxima, e já foi administrado a mais de 500 alunos. Observamos aumento significativo dos níveis de empatia medidos por uma escala psicométrica autoaplicada. Os resultados foram publicados na revista Academic Medicine. Acreditamos, assim como Aristóteles, que a virtude é uma sabedoria do fazer e não somente do ser e, portanto, pode ser aprendida na prática. Dividimos com os alunos nossa convicção de que o exercício da Medicina deve estar pautado na fidelidade à verdade humana, na compaixão, na coragem e na generosidade.

O sucesso dessa iniciativa também está relacionado ao fato de que os professores que fazem a atividade são modelos reais de prática, que passam visita, com esses mesmos alunos, no pronto-socorro, na enfermaria e na unidade de terapia intensiva. Os alunos podem, então, observar que teoria e prática andam, alegremente, de mãos dadas.

Depois desse passo inicial, optamos por incrementar o curso básico, durante os dois primeiros anos de faculdade, com disciplinas inspiradas nas humanidades. Começamos a trazer conceitos da improvisação no teatro para ensinar a relação médico-paciente, e obras de artes plásticas, literatura, música e poesia para debater aspectos relacionados à formação da identidade profissional médica.

Nosso sonho é elaborar um eixo formativo longitudinal, que comece já no primeiro ano da faculdade e permeie os seis anos do curso e, também, a residência médica, para discutir a formação da identidade profissional médica, seus valores e suas virtudes. Neste processo, queremos resgatar a importância do conhecimento humanístico para a construção de planos terapêuticos realmente compartilhados, que consigam contemplar todas as dimensões dos nossos pacientes, ajudando-os, realmente, a viver de forma plena, em que a alegria seja possível, mesmo em companhia de suas doenças.
 

*Marco Antonio de Carvalho Filho, clínico geral e coordenador da Disciplina de Emergências Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

 

 


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