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CAPA

PONTO DE PARTIDA (pág. 1)
Mauro Gomes Aranha de Lima


ENTREVISTA (pág. 4)
Kerry Sulkowicz


CRÔNICA (pág. 10)
Fabrício Carpinejar*


CONJUNTURA (pág. 12)
Intoxicação alcoólica


DEBATE (pág. 16)
Lei Maria da Penha e a violência contra a mulher


MÉDICOS NO MUNDO (pág. 23)
Denis Mukwege


HOBBY DE MÉDICO (pág. 27)
Vidal Haddad Júnior


GIRAMUNDO (Pág. 30 e 31)
Avanços da ciência


PONTO COM (Pág. 32 e 33)
Mundo digital & tecnologia científica


HISTÓRIA DA MEDICINA (Pág. 34)
Paulo Tubino* e Elaine Alves**


CULTURA (Pág. 38)
Fernando Zarif


GOURMET (Pág. 44)
Kelma Vera Donuetts


MÉDICOS QUE ESCREVEM (pág. 42)
Luiz Carlos Aiex Alves*


FOTOPOESIA (Pág. 48)
Paulo Neruda


GALERIA DE FOTOS


Edição 76 - Julho/Agosto/Setembro de 2016

MÉDICOS QUE ESCREVEM (pág. 42)

Luiz Carlos Aiex Alves*

A estranha saudade de um lugar que não conheci



Acima,  o que restou do cenário fotografado por Magrini,
a Grande Mesquita de Alepo (século XIII). Um retrato pungente
da insensatez da guerra, que ataca e destrói coisas belas...

 

Por mais de uma vez a Nagibe me contou aquela mesma história. Em sua primeira noite no Brasil, ela dormiu no banco de jardim de uma praça pública da cidade de Santos. Ela e o irmão José. Ela com 12 anos e ele com 16. Ambos haviam chegado da longa viagem apenas com as roupas do corpo. Como o seu primeiro filho, o meu pai, nasceu em dezembro de 1912, suponho que isso tenha ocorrido por volta de 1903 ou 1904. Naquele tempo, os imigrantes pobres que chegavam da Síria costumavam desembarcar ou no porto de Santos, ou no do Rio de Janeiro. Deve ter sido uma experiência traumática. Uma menina de 12 anos, que não falava a língua, entregue à própria sorte, ela e o irmão, num lugar estranho, com costumes totalmente distintos! A minha mãe sempre dizia que a sogra era da cidade de Homs. Para o meu irmão caçula, João Paulo, a Nagibe contou que a mãe dela viera do Kuwait.

Quando a Dalila conheceu o primogênito da Nagibe, o que seria o seu futuro sogro já havia falecido há algum tempo. Tenho a vaga ideia de que ele era bem mais velho do que a esposa, porém sei que era de Yabrud, cidade que fica às margens do deserto sírio. Conta a lenda familiar que o Salomão José, ao chegar ao Brasil, por receio de perseguições, imaginárias ou reais, trocou o sobrenome Arbex para se ocultar atrás do bem português Alves. O seu primeiro filho, José Salomão, nasceu na mineira Itajubá. O segundo, Elias Salomão, na paulista Lorena. Finalmente o último, Salim Salomão, na fluminense Resende. A família mudava de uma cidade para outra, com o mascate Salomão José tentando a sorte em diferentes praças. Acabou estabelecendo-se em Resende, onde havia um grupo grande de imigrantes de sua cidade natal. Dizia-se, brincando, que havia mais yabrudenses em Resende do que em Yabrud.

A Nagibe nunca se alfabetizou. No entanto, era uma mulher de personalidade marcante, inteligente e uma esperta comerciante. Formou dois filhos médicos, o José e o Salim, que estudaram na Faculdade de Medicina da Praia Vermelha. E fez fortuna. Junto com os filhos, compraram fazendas, a última delas em Vassouras, na antiga região de café do Vale do Paraíba, de 3.500 hectares. Até hoje, passados mais de 35 anos de sua morte, a fazenda Dom Carlos (nome original) ainda é conhecida como a fazenda “da turca”. Trabalhavam bastante, principalmente ela e o Elias. E quase não gastavam o dinheiro que amealhavam. Aliás, os árabes têm a fama de trabalhar duro. Tanto que o verbo “mourejar”, trabalhar como um mouro, presente em várias línguas, significa trabalhar muito.

Os meus avós maternos também eram de Yabrud. O José (Youssef) Aiex ficou um tempo no Brasil, retornou à Síria, e para cá novamente voltou, desta vez acompanhado da Badia. Esta minha avó cozinhava como ninguém, qualidade amplamente alardeada no seio da própria “colônia”. Ela fazia um quibe frito inigualável, extremamente saboroso. Oval, grande, oco por dentro, com as paredes finas. O pai da Dalila, por seu turno, era mais intelectualizado. Lia jornais em caracteres árabes e era uma pessoa bastante independente. Enviuvou aos 70 anos e decidiu casar-se novamente. Fazia duas únicas exigências com relação à pretensa futura noiva: que fosse virgem e síria! Após algumas andanças e uma primeira tentativa frustrada, encontrou a Maria, em São João del Rei, 20 anos mais jovem do que ele. Viveu com ela até o fim da vida, falecendo com 101 anos de idade.

Eu gostava de pedir à Badia para repetir a história do cavalo árabe, quando eu ia dormir, com ela deitada ao meu lado na cama. Era mais ou menos assim: o cavalo se assustou, deu um piparote, e o cavaleiro foi lançado à altura de um alto poste. Quando estava lá em cima (eu o imaginava bem, bem lá no alto), ele dizia (em árabe) qualquer coisa como: “Nossa Senhora me proteja!” E o cavalo, como que atendendo ao seu apelo, como que por um milagre, ficava paradinho no mesmo lugar. E o moço caía sentado em cima dele, sem se machucar!

Já a Nagibe contava que, certa feita, à noite, os mulçumanos apareceram em sua aldeia. Ela ficou escondida, agachada em um canto da casa, e não foi vista pelos homens. Mas viu (horrorizada) o sangue a escorrer pelo chão ao lado dela, como se fosse um rio.

Hoje a muito amada e idealizada Síria dos meus avós não existe mais. Homs está destruída. A outrora charmosa e sofisticada Alepo não existe mais. A cosmopolita Damasco, com seu famoso souk (mercado), está acabada. Palmira e tantas e tantas outras cidades e vilas também. Yabrud parece que ainda não foi tão impiedosamente bombardeada nessa monstruosa, absurda, interminável guerra civil. Que grande pena! Que imensa tristeza! Não deu tempo para eu conhecer esses lugares, que povoaram as minhas lembranças juvenis e que estranhamente sinto tanta saudade, agora que talvez pudesse.


*Psiquiatra e ex-conselheiro do Cremesp.


Em outubro de 2009, fechávamos a edição nº 49 da Ser Médico, com matéria de Turismo sobre a Síria, texto e fotos do dermatologista Rodrigo Magrini. Revista já na gráfica, Magrini nos enviou a foto ao lado, com um comentário:

“Okay.... sei que não sou Caetano... e sei que essa foto não foi feita na avenida Ipiranga com a São João... mas tem algo especial aqui... a Mesquita centenária e a elegância singular dessa mulher usando burca...

Me chamou muito atenção a delicadeza, mesmo coberta... sutil, como o contraste do branco do pé tocando o mármore... Foto simples... mas com um imenso significado cultural...

... elegância sem cor... sem molde... sem marca... elegância sem rosto.
...mandei para vcs por carinho... nem pensei em tê-la publicada... Apenas quis dividir..

Rodrigo”

 

 


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